sábado, 18 de agosto de 2012

Sacramenta: um bairro de lutas e de muita história.

Moro numa parte do bairro da Sacramenta que anos atrás era quase que completamente alagada. É o que chamamos em Belém de "baixadas": regiões da cidade que ficam abaixo do nível dos rios que a circundam. Minha casa, assim como a grande maioria, era de madeira, construída sobre o Canal da Pirajá, anteriormente um dos muitos igarapés que atravessavam a capital paraense. Quando chovia as águas do igarapé invadiam nosso banheiro e por pouco não tomavam conta do andar térreo. Durante o inverno a situação piorava. Tínhamos que ir para o trabalho com os sapatos nãos mãos, pisando na lama até o momento em que parávamos em alguma casa mais adiante para lavarmos os pés e seguirmos viagem.

Baixada de Belém - Bacia do Una
No dia que o meu filho Alexandre completava cinco anos caiu uma chuva torrencial que alagou completamente a Rua Nova, onde moramos até hoje. A altura da água chegava no joelho.  Tentei persuadir a Regina a mudar o local da festa para a casa de uma das minhas irmãs, mas ela não aceitou dizendo que a comemoração tinha que ser na nossa residência. Ela chorava copiosamente, pois temia que ninguém participasse da comemoração. Qual não foi a nossa surpresa quando os/as amigos(as) começaram a chegar, com suas calças e saias suspensas até o joelho, sapatos nas mãos. Foi um momento de grande alegria, daqueles inesquecíveis.

No local o Hotel Regente, na década de 60 foi a sede
da União Acadêmica Paraense (UAP).
Seu prédio e teatro foram destruídos sob
 o comando do coronel José Lopes de Oliveira
Durante a ditadura militar e principalmente na década de 1980 se constituíram fortes movimentos sociais urbanos que lutavam por melhores condições de vida da população da periferia. A Sacramenta era um dos bairros mais mobilizados à época. Haviam três grandes lutas se desenvolvendo no período:  1) Na Área da Aeronáutica (desde o início do Canal da Pirajá, na Av. Dr, Freitas, até área que se convencionou chamar Malvinas, às margens do Canal São Joaquim). Aliás, nesta última os nomes das ruas são de pessoas que estiveram à frente das lutas pela  permanência da população no local, ou das que apoiaram as ações do antigo Centro Comunitário Primeiro de Setembro: Claudio Bordalo, Carlos Augusto dos Santos Silva (o Guto), Raimundo Jorge Pires Bastos, Pe. João  Beuckenboon, Dr. João Marques e outros; 2) Na Área Promorar (Canal do São Joaquim) contra as tentativas do Exército de remanejar compulsoriamente centenas de famílias para o que é hoje o bairro Providência, próximo ao aeroporto, e; 3) Na área denominada Ferro Costa, por conta da família (latifundiários urbanos) que se dizia proprietária da região onde moravam cerca de 5.000 famílias.

Na Área ferro Costa travamos  intensas disputas com Jader Barbalho e seus aliados, que incluía naquela época a militância dos Partidos Comunista Brasileiro (PCB) e do Brasil (PC do B). Jader e seus assessores mais próximos estimularam gangues de arruaceiros a nos enfrentar nas ruas. Então, era muito comum os choques violentos, pois eles nos atacavam quando desenvolvíamos a mobilização da comunidade para lutar pela desapropriação da área e a titulação das posses. É impossível não lembrar de pessoas valorosas  que se empenharam de corpo e alma nessa luta: seu Laudemar, Carlito Aragão, Alberdan Batista, Marciana, Irene, os/as integrantes do Movimento Jovem da Passagem "E"/MOPAE (Carlinhos Matos, Nei, Neia, Souza, Rosa e outros) e da Juventude Unida na Caminhada pela Libertação do Povo/JUCALP (Domício, Cabinho, Nana, Maria, Rosa, Lucia, Lucica, Graça e outros), ambos grupos jovens da Paróquia de São Sebastião que, inspirados na Teologia da Libertação, se integravam às lutas sociais. Também é preciso lembrar da participação ativa da base social dos Centros Comunitários Irmãos Unidos e Boa Esperança.

Nas manifestações organizadas pela Comissão dos Bairros de Belém (CBB), como as grandes passeatas pelas ruas do centro, as organizações comunitárias da Sacramenta estavam entre os destaques. Chegávamos fazendo muito barulho: "Aguenta, aguenta, aguenta, chegou a Sacramenta!", bradávamos com todas as forças. Íamos em passeata do bairro até o centro para nos juntar aos outros movimentos sociais.

Na década de 1980 criamos a partir da antiga Área Ferro Costa o Movimento pela Urbanização Popular (MUP), que tinha como objetivo estratégico a urbanização da área influenciada pelo Canal da Pirajá. Moradores e moradoras como a Doninha, seu João Trindade, dona Lucinha, dona Maria, dona Rosa, Gilberto Saldanha, Regina Ferreira, seu Benedito, Jorge Cabeção, seu Aluísio e esposa, Pedro Peloso, Varela e outros(as) merecem todas as homenagens pelo que fizeram.

Não é possível negar a contribuição do MUP para a constituição posterior do Movimento em Defesa do Projeto de Macrodrenagem, que reunia centros comunitários de diferentes bairros da Bacia do Una, bem como do Movimento em Defesa dos Projetos de Saneamento, que incorporava entidades de Ananindeua que atuavam nas áreas onde estavam sendo (mal) executados o PROSEGE e o PROSANEAR, projetos de saneamento financiados pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e Banco Mundial (BIRD), respectivamente.

Na luta para melhorar as condições de vida na nossa área realizamos mutirões, assembleias, ocupação da Secretaria Municipal de Saneamento e muitas outras iniciativas. Lembro da vez em que Carlinhos Matos, Gilberto Saldanha, Domício Nunes e eu entramos em baixo do piso da retífica que se localizava bem no encontro dos canais da Pirajá e do Galo, bem ali no bairro do Acampamento, próximo à famosa ponte do Galo. Pois bem, tivemos que tomar "alguns" goles de cachaça pra enfrentar a empreitada. Era tanta sujeira, excrementos (merda, mesmo!), madeira, lata enfim, muito lixo, que impedia que as águas do Pirajá corressem livremente. O que era um grande problema quando se juntava maré alta com chuva torrencial. Tínhamos à época em torno de 20 anos. Lembranças da juventude...

É o que vejo a partir da minha casa
Hoje, olho do terraço da minha casa e vejo prédios altíssimos "se aproximando" da área em que moro. Vejo a população de menor poder aquisitivo saindo do local, assim como as casas de madeira sendo substituídas pelas de alvenaria. Uma parte considerável da atual população nem deve saber o que centenas de moradores e de moradoras passaram para garantir que a área fosse urbanizada. Devo confessar, porém, que tenho orgulho do que eu e tantos(as) outros(as) fizemos. Sinto que uma parte de mim está em cada rua, nesse pedaço de chão que, infelizmente, o capital imobiliário que tomar para si. Tudo sob as bençãos de Dudu e sua trupe.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Um tiro, outro tiro e mais uma vida que se foi...

Emerson vestido com a camisa do
"mais querido"
Ele tinha apenas 29 anos. Pai de três filhos do primeiro casamento e mais uma menina do segundo. Na noite do sábado, após deixar dois sobrinhos na casa do irmão, foi covardemente atingido por duas balas na nuca. Segundo dizem, o criminoso ainda efetuou mais dois disparos bem próximo do rosto, mas o revólver travou. Logo após o assassinato fugiu com o comparsa numa bicicleta O nome da vítima: Emerson.  Esposo de uma das minhas sobrinhas.

Local do crime: área próxima ao Canal do São Joaquim, na Sacramenta. A área é considerada "zona vermelha" pela Polícia Militar dada a intensidade de diferentes modalidades de  violência: roubos, assassinatos, furtos, agressões, estupros etc.

A família ainda levou a vítima para o Pronto Socorro Municipal da 14 de Março, mas a mesma já chegou sem vida. E mesmo que estivesse viva fatalmente padeceria numa maca no corredor por causa da superlotação e da greve dos(as) funcionários(as).

Emerson era pai da minha linda sobrinha-neta Isabelle, carinhosamente chamada de "Bebelle". Ela tem apenas três anos. Não verá mais o pai, que era uma figura do bem. Torcedor do Remo, trabalhador, alimentava planos para a casa nova. Era funcionário da CTBEL e à noite fazia "bicos" como mototaxista. O corpo estirado no chão ficou encharcado de sangue.

Bebelle e meu filho Alexandre, o "padinho".
Corpo aliás que só foi entregue à família para o velório na tarde do domingo, aumentando ainda mais o sofrimento de todos(as) que o aguardavam para as últimas homenagens. Durante o período que esperamos pelo corpo fiquei observando tudo o que ocorria à minha volta.

Da casa dos pais do Emerson dá pra ver a caixa d'água do Conjunto Paraíso dos Pássaros, assentamento que recebeu as centenas de famílias remanejadas compulsoriamente pelo Projeto de Macrodrenagem da Bacia do Una. De paraíso, apenas o nome. Ironia tucana para uma situação precária. Entre a casa onde me encontrava e a caixa d'água, muito mato, muito lixo, muito abandono. Por várias vezes vi pessoas levando seu lixo e o jogando na beira do canal. Também vi urubus, gatos, cães e um idoso revirando os restos. Sim, um homem de idade avançada catando sobras.

Também vi muitas crianças. Algumas claramente desnutridas, magras, de baixa estatura, cabelos desgrenhados, brincando na vala com suas "embarcações", ou num velho velocípede "incrementado" que levava sempre um pequeno ser a toda velocidade. Entre as brincadeiras as que envolviam tiros e revólveres faziam parte do "cardápio" da imaginação mirim.

Vi pré-adolescentes sentados embaixo das torres de alta tensão ouvindo o "treme" nos seus celulares, todos requebrando animadamente ao som dos mais novos sucessos do gênero. Um deles me chamou especial atenção porque se parece muito com um jovem que vi crescer, que era amigo dos meus filhos, que me chamava de tio e que sempre demonstrou muito carinho por todos aqui de casa. Agora, está confinado num presídio. Confesso que aquela situação me provocou uma forte dor no peito: de aflição, de tristeza, de revolta, de vergonha pelo que estamos fazendo, por ação ou omissão, às nossas crianças. Lembrei da licitação do governo estadual que pagou cerca de R$ 63,00 por uma xícara de café. Enquanto isso, não há coleta de lixo, não há creches, não há muita esperança ali, às margens do Canal São Joaquim.

Periferia de Belém
Conversei com o filho mais velho do Emerson. Uma figurinha centrada nas ideias, mas completamente desamparada, perdida, naquele momento. Estava perto quando ele falou sobre os tiros que ouviu, do medo que sentiu por lembrar que o pai saíra momentos antes, da queda da cama com o rosto no chão quando alguém bradou: "mataram o teu pai". Também ouvi a filha narrar as condições em que a mãe encontrou o corpo no chão. Foi de cortar o coração.

Quando o corpo finalmente chegou a situação ficou dramática: mãe, avó, irmãs, amigos(as) desmaiaram quase que ao mesmo tempo. Foi um corre-corre. Eu e meu filho carregamos a avó para a casa ao lado. Outros socorreram as demais. Vi a mãe do Emerson abraçar minha sobrinha, lamentando a dor que aquela morte lhe provocava.

Foi um domingo terrível. Nem vou falar sobre o estado do corpo. O que me dói até este momento que escrevo é lembrar que não vamos mais ver o Emerson, que ele não vai mais ao campo com a gente assistir os jogos do Remo, que a filhinha dele dificilmente vai lembrar dos momentos que viveram juntos.

Um tiro, outro tiro e uma vida que se foi... Um número na estatística. Revoltante!

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

E o Big Bang não foi o início?

A teoria do Big Bang
O Lasanha, como vocês todos(as) sabem, é interplanetário. Então, resolvi tratar agora de algo realmente grande. A maioria de nós leu, ouviu ou aprendeu na escola que este universo nasceu a partir de uma grande explosão: o Big Bang. Essa teoria ganhou fôlego com a descoberta do astrônomo estadunidense Edwin Hubble de que o universo encontra-se em plena expansão.

De acordo com a teoria do Big Bang, em algum momento remoto do passado ocorreu um fato extraordinário e dele resultou tudo o que está a nossa volta, inclusive nós mesmos. Portanto, também temos o cosmos dentro de nós compondo a nossa estrutura corporal. Não é fantástico?

Através de intrincados e complexos cálculos matemáticos atingimos a capacidade de saber o que aconteceu a menos de um segundo após a colossal explosão que nos trouxe até aqui. Contudo, ainda não somos capazes de explicar o que provocou a mesma. As controvérsias teóricas são muitas e parecem restritas a um mundo complemente estranho ao da maioria das pessoas.

Segundo Prigogine, dizer que o universo surgiu a partir de uma singularidade provoca diversos problemas, pois “a ciência só pode descrever fenómenos repetíveis. Se se deu um fenómeno único, uma singularidade como o Big Bang, eis que nos encontramos perante um elemento que introduz aspectos quase transcendentais, que escapam à ciência” (PRIGOGINE, Ilya. O Nascimento do Tempo. Tradução de Marcelina Amaral. Edições 70, Lda. Lisboa / Portugal, 2008, p. 57). Como adotar, portanto, uma explicação da origem de tudo fundada num fenômeno singular?

De acordo com Prigogine, o universo é o resultado “de uma instabilidade que sucedeu a uma situação que a precedeu; em síntese, o universo terá resultado de uma mudança de fase em grande escala” (Idem, p. 33). Caso Prigogine e os/as demais cientistas que apoiam esse ponto de vista estiverem corretos(as), havia algo anterior a este universo onde estamos. O que? Aí é que a "porca torce o rabo", pois não há sequer palavras adequadas para explicar esse "antes", apenas para citar uma única dificuldade que surge a partir dessa explicação: “Se o universo tem verdadeiramente uma história e, portanto, um passado e um começo, ele deveria ter surgido do nada. Mas como o ser poderia surgir do nada? Não seria preciso então repensar os conceitos de “ser” e “nada” ao mesmo tempo em que somos levados a repensar os conceitos de espaço e de tempo?” (PIETTRE, Bernard. Filosofia e ciência do tempo/Bernard Piettre; tradução: Maria Antonia Pires de Carvalho Figueiredo. – Bauru, SP: EDUSC, 1997, p. 162). 

Edwin Hubble
Outra questão interessante: se havia algo anterior a este universo, então, podemos imaginar que o Big Bang não se trata verdadeiramente de uma singularidade, mas de um fenômeno que pode ter ocorrido várias e várias vezes. Nesse caso, diferentemente do que imaginou o matemático alemão Rudolf Clausius, o universo não caminha para a sua morte térmica, justamente porque ele não é um sistema fechado. Ou seja, nosso universo seria apenas a "fase" de um processo cósmico que poderíamos dizer infinito. Um  fenômeno repetitivo capaz de ser explicado pela ciência.

Nem vamos falar aqui das teorias que defendem a ideia dos múltiplos universos. Ou seja, que esta nossa casa é apenas uma em meio a tantas outras. Ou ainda, daquelas que afirmam a multiplicidade das dimensões do tempo, dos universos paralelos, "buraco da minhoca" etc. É muita viagem. Porém, convém dizer que são teorias sérias e fundamentadas em muitos cálculos.

Eu, um humilde historiador, devo dizer que me encontro muito mais próximo das ideias de Prigogine do que da tese de que tudo surgiu com o Big Bang. E você?

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Equilíbrio?

É muito comum ouvirmos conselhos acerca da importância de encontrarmos nossos pontos de equilíbrio. Médicos, amigos e familiares sempre nos dizem isso quando passamos por momentos de aflição, doenças ou dificuldades. "Mente sã, corpo são", diz o enunciado bastante conhecido do público. Contudo, você já parou pra pensar no significado do que vem a ser realmente "equilíbrio"?

Ilya Prigogine
Pois bem, um corpo em estado de equilíbrio é um corpo sem vida, pois a morte é, na verdade, o momento em que atingimos plenamente o estado de equilíbrio. A vida existe, em essência, por conta do desequilíbrio. Células morrem e outras nascem todos os dias até o momento em que o número daquelas que perecem é superior ao daquelas que surgem. Órgãos funcionam plenamente porque há desequilíbrio entre eles e não o contrário. Se pensarmos do ponto de vista da física, a entropia máxima - grosso modo, podemos dizer que entropia significa "estado de desordem" de um sistema termodinâmico - é justamente o ponto culminante do equilíbrio, onde a "desordem" já não existe. Por conseguinte, ela representa a impossibilidade do surgimento da novidade.

Segundo o filósofo Bernard Piettre, a "instabilidade e o desequilíbrio são, em compensação, a condição do surgimento de uma ordem” (PIETTRE, Bernard. Filosofia e ciência do tempo/Bernard Piettre; tradução: Maria Antonia Pires de Carvalho Figueiredo. – Bauru, SP: EDUSC, 1997, p. 150-151). Diferentemente do que imagina o senso comum o caos não produz tão somente desordem, mas também um novo tipo de ordem. Exemplo: o nosso universo. Eis o que nos diz o químico Ilya Prigogine:
Um título como As leis do caos pode parecer paradoxal. Existem leis do caos? O caos não é, por definição, “imprevisível”? Veremos que não é assim, mas a noção de caos nos obriga, em vez disso, a reconsiderar a de “lei da natureza”. Na perspectiva clássica, uma lei da natureza estava associada a uma descrição determinista e reversível no tempo, em que o futuro e o passado desempenhavam o mesmo papel. A introdução do caos obriga-nos a generalizar a noção de lei da natureza e nela introduzir os conceitos de probabilidade e de irreversibilidade. (...) mas o que gostaria de ressaltar nesse contexto é o papel fundamental do caos em todos os níveis de descrição da natureza, quer microscópico, quer macroscópico, quer cosmológico (PRIGOGINE, Ilya. As leis do caos. Tradução Roberto Leal Ferreira. – São Paulo: Editora UNESP, 2002.2002, p. 11).
Tendemos a imaginar que a nossa própria evolução enquanto espécie se deu de uma forma tão harmônica, que o que somos hoje parecia estar determinado desde priscas eras. Ledo engano: somos fruto da desordem, do desequilíbrio, de probabilidades que se concretizaram, do acaso. Entretanto, conhecemos muito bem o desenho que mostra a nossa evolução desde um certo tipo de primata até a constituição atual. Não parece algo bem natural?

Evolução da nossa espécie

Resgatar a noção de probabilidade, acaso, desequilíbrio/equilíbrio é importante até mesmo para refletirmos sobre o nosso presente e as perspectivas futuras. Aliás, faz-se necessário incorporar também outra noção: a bifurcação. Na história, são justamente nos momentos de bifurcação que se colocam na mesa as múltiplas possibilidades. A história, afirmou o marxista francês Bensaïd, “já não segue doravante o traçado único que lhe daria sentido. Ele explode em galhos e ramos sempre recomeçados. Cada ponto de bifurcação crítico coloca suas próprias questões e exige suas próprias respostas” (BENSAÏD, Daniel. Marx, o Intempestivo: grandezas e misérias de uma aventura crítica. (séculos XIX e XX)/Daniel Bensaïd; tradução de Luiz Cavalcanti de Menezes Guerra. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1999, p. 60-61). Tal reflexão nos leva a questionar a ideia de que o capitalismo se constitui no estágio supremo da humanidade, ou que não há outra alternativa para o desenvolvimento da Amazônia a não ser entupi-la de hidrelétricas, expandir a monocultura da soja ou do eucalipto, ou ainda que o mercado de carbono (a mercantilização da natureza) seja o caminho para mantermos a floresta em pé. Não! A história é um livro em aberto e ela ainda está sendo escrita.

Então, amigas e amigos admiradores(as) do Lasanha: quando alguém chamar de você de desequilibrado(a), pode não ser de todo ruim. Ao menos mostra que você está vivo(a). Abraços.


sexta-feira, 27 de julho de 2012

Motivos para apoiar Edmilson Rodrigues: Parte I.

Ao longo do tempo o PT buscou tirar algumas lições das suas diversas experiências administrativas espalhadas pelo país. Tal conhecimento ficou conhecido como o Modo Petista de Governar. Os dois eixos indicados como os principais diferenciadores das administrações petistas em relação às demais eram a participação popular e a inversão de prioridades.

Modo Petista de Governar
A participação popular se mostrou importante para a democratização do Estado e o controle social não somente sobre as políticas governamentais, mas também no que diz respeito à atuação da iniciativa privada e seus efeitos sobre a sociedade. O PT incentivou a constituição de conselhos a fim de favorecer a gestão compartilhada, bem como de instrumentos democráticos como o Orçamento Participativo. Além disso, o PT estimulou a mobilização social e a democratização da informação.

A inversão de prioridades representou um novo olhar sobre o público e o bem público. Parcelas da população historicamente excluídas do acesso a equipamentos públicos e das políticas governamentais passaram ao centro das preocupações das gestões petistas. O OP foi, sem dúvida alguma, uma importante ferramenta de distribuição mais equitativa dos recursos orçamentários que, aliado a diferentes programas e projetos de inclusão social, possibilitou a melhoria das condições de vida de grandes contingentes populacionais.
Participação Popular


Entretanto, com o passar do tempo, esses dois eixos já não eram suficientes para distinguir as administrações petistas de outras de caráter liberal ou mesmo conservador. Isto porque a direita percebeu que esse Modo Petista de Governar não somente melhorava a vida da população, como também tornava o partido uma grande "máquina eleitoral" ao desmontar seus redutos históricos e escantear suas lideranças da vida pública. Esse fato foi particularmente notável no Nordeste brasileiro, mas também na Amazônia. O que fez a direita? Também passou, a seu modo, a executar ações de "inversão de prioridades" calcadas, evidentemente, no assistencialismo, e de "participação da sociedade", ainda que fortemente controlada. Essa situação exigiu do PT um passo ainda mais ousado. Daí surgiu o terceiro eixo: a disputa pela hegemonia. Ou seja, não bastava distribuir melhor os recursos e/ou chamar a população para o debate político. Era necessário ainda constituir uma força contra-hegemônica visando mudanças estruturais na sociedade a longo prazo, e em grande parte isso deveria passar necessariamente pelo aprofundamento da democracia:
De modo geral, podemos dizer que o processo de democratização expresso na "ampliação" da esfera pública gerou, ao mesmo tempo, um problema a ser resolvido e os meios de sua solução. O problema consiste em superar a contradição existente entre, por um lado, a socialização da participação política e, por outro, a apropriação não social dos mecanismos de governo da sociedade. Nessa medida, a plena realização socialista do homem não requer apenas a supressão da apropriação privada dos meios de produção, que são frutos do trabalho coletivo: requer também a eliminação da apropriação não social (privatista) das alavancas de poder, ou seja, a realização do que Marx chamou de "autogoverno dos produtores associados". Superar a alienação econômica é condição necessária, mas não suficiente, para a realização integral das potencialidades abertas pela crescente socialização do homem; essa realização implica também o fim da alienação política, o que, no limite, torna-se realidade mediante a reabsorção dos aparelhos estatais pela sociedade que os produziu e da qual eles se alienaram (é esse, de resto, o sentido da tese marxiana do "fim do Estado"). COUTINHO, Carlos Nelson. Contra a Corrente: Ensaios sobre democracia e socialismo. - São Paulo : Cortez, 2000, p. 29 (grifo nosso).

Edmilson Rodrigues
Creio que a experiência que vivenciamos em Belém com o Congresso da Cidade se alimentou fortemente desse desejo de realizar a disputa pela hegemonia com os segmentos conservadores da sociedade. O Congresso, apesar de alguns bons estudos desenvolvidos por pesquisadores(as) da UFPA, ainda não foi suficientemente analisado e, portanto, tiradas as lições devidas. Da minha parte, considero aquela experiência ainda mais avançada do que o OP de Porto Alegre, pois conseguiu efetivamente atrair múltiplos olhares e vivências para a construção de uma nova cidade: homossexuais, idosos(as), jovens, negros(as), portadores(as) de necessidades especiais, moradores(as) da periferia, servidores(as) públicos(as), afrodescendentes, ONGs, movimentos sociais, enfim, uma gama enorme de atores sociais envolveram-se de corpo e alma nas reflexões e nas decisões de interesse público. Tudo passou a ser do nosso interesse. Lembro das mobilizações que realizamos contrárias ao desmonte do porto de Belém, que o governo do PSDB queria impor. Também me vem à lembrança as ações de denúncia e de combate à manipulação dos índices que serviam para o cálculo do repasse dos recursos oriundos do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Servições (ICMS); manobra dos tucanos para asfixiar o governo do Edmilson Rodrigues.

Combatendo a exclusão e a desigualdade sociais
Com o Congresso da Cidade passamos a ter uma visão mais abrangente e mesmo mais generosa sobre Belém e seu futuro. Logicamente que uma quantidade enorme de pessoas contribuíram para a realização dessa fabulosa experiência. Algumas bastante conhecidas, a maioria anônima. Todavia, não há como negar o papel decisivo desempenhado pelo então prefeito Edmilson Rodrigues. Ele não somente estimulou como foi o mais enfático defensor da iniciativa. E isto não é pouco, pois não são muitas as pessoas que decidem partilhar o poder com outros.

Por outro lado, Edmilson Rodrigues sempre teve muito claro os limites impostos pela institucionalidade burguesa. Daí a sua contínua vontade de romper com essas amarras, a fim de garantir a efetiva participação da sociedade. É alguém que mesmo tendo plena consciência das suas atribuições legais teima em não sujeitar-se a elas, como um fantoche. É alguém que ainda sonha, luta e vive por uma outra sociedade, que não se rendeu ao desenvolvimentismo econômico como a única utopia.

sábado, 21 de julho de 2012

Incompetência, lixo e desleixo.

Participei hoje pela manhã de uma caminhada com alunas do curso de Pedagogia da Universidade do Estado do Pará (UEPA). Essas estudantes já encontram-se dando aulas para alunos(as) da primeira a quarta séries, incluindo Geografia e História. Foi um "tour" pela Estação das Docas, Ver o Peso e Feliz Lusitânia. O evento objetivou mostrar a essas alunas as mudanças ocorridas na cidade desde a sua fundação, abordar fatos históricos marcantes ocorridos naque área, as alterações nas funções dos prédios e outros espaços ao logo do tempo e sobre as formas de abordar a geografia com alunos(as) das séries iniciais. A ideia da caminhada foi da Regina Ferreira que está ministrando a disciplina Geografia da Amazônia naquela universidade.


Nosso maravilhoso Ver-o-Peso
Fui convidado para participar da atividade por ser historiador. Uma das coisas que sempre chamou minha atenção diz respeito ao desconhecimento da nossa história por grande parte de nós belenenses. Dos conflitos envolvendo cabanos e forças legalistas que resultou na morte de Antonio Vinagre, ocorrida na esquina das atuais Frutuoso Guimarães com a João Alfredo. Das tentativas de Diogo Antonio Feijó de convencer os ingleses a invadir a Amazônia para destruir a revolta popular cabana. Das estruturas de metal oriundas da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos no Mercado do Ver-o-Peso e nos galpões da Estação das Docas. As pressões de moradores locais sobre famílias de imigrantes japoneses e alemães durante a Segunda Guerra Mundial - não esqueço de uma foto sensacional retratando isso e que foi publicada pelo jornal Folha do Norte. Bem, os exemplos são abundantes.

Revolucionários(as) Cabanos(as)
Recordo que somente fui estudar a Cabanagem quando entrei na UFPA, pois a ditadura militar simplesmente baniu o movimento cabano dos currículos escolares. Daí a importância do resgate dessa história com a Aldeia Cabana e outras iniciativas. Todavia, as forças conservadoras buscam ainda hoje manter sepultada a Cabanagem. Tanto é que a atual administração municipal se refere ao equipamento público da Av. Pedro Miranda como Aldeia Amazônica em vez de Aldeia Cabana.

Sempre fico empolgado quando foco a nossa história. Não obstante, esse post foi escrito para expressar a minha revolta com o estado atual do Complexo Ver-o-Peso, em particular da Feira do Açaí. Senti tanta saudade de como era aquela feira durante o governo do Edmilson Rodrigues, então no PT. Além de local de trabalho de centenas de pessoas envolvidas direta ou indiretamente com a produção e a comercialização do açaí, era também ponto de encontros, de boas conversas, de comidas típicas, de shows, de ouvir música regional, de estar perto de artistas da nossa terra. O que vi durante a caminhada? Lixo, muito lixo em dezenas de sacos amontoados ou simplesmente espalhado pelo chão. A Ladeira do Castelo está destruída, com o calçamento todo arrebentado. Os prédios históricos deteriorados. Enfim, senti profunda vergonha daquilo ali. Como levar amigos que vêm nos visitar para um local daquele, sem estrutura, policiamento precário, sem higiene? Como passear com a família num ambiente nessa situação?

O abandono criminoso do Ver-o-Peso
Sob todos os aspectos a Feira do Açaí e adjacências encontram-se em estado lastimável: segurança, higiene, sanitário, comodidade, atendimento etc. É culpa de quem? De quem continua trabalhando dia e noite naquele local para sobreviver, ou de quem abandonou completamente esse ponto importante da cidade? Aquela área do Ver-o-Peso é, como outras na cidade, importante na formação da nossa própria identidade cultural. Infelizmente temos um "doutor" em "traquinagens" na prefeitura, cuja maior preocupação é gerir seus bens materiais, que cresceram como nunca nesses oitos anos de governo, além da continuidade da sua carreira política.

O Complexo Ver-o-Peso está uma vergonha! Seu abandono expressa a canalhice do bloco de poder que se assenhorou desse ente do Estado que é a prefeitura. Duciomar e sua corja querem mais que aquilo tudo se exploda a fim de que, quem sabe um dia, entupir a área de prédios com quarenta andares. Para eles pouco importa história, cultura e identidade, mas tão somente o tilintar das trinta moedas...
Estudantes de Pedagogia da UEPA
e sua professora Regina Ferreira.

Belém merece ser uma cidade justa, democrática e sustentável.

Basta ter alguma sensibilidade para perceber que Duciomar Costa foi uma tragédia para Belém. Seus oito anos de mandato significaram não somente o desconstrução das conquistas sociais e democráticas alcançadas durante o governo de Edmilson Rodrigues, como também a completa privatização do Estado. Todavia, é preciso reconhecer que durante muito tempo fizemos uma leitura equivocada da capacidade política do atual edil. Tal análise foi extremamente nefasta ao conjunto dos movimentos sociais com atuação na capital.

Dudu: mais rico, mais influente, mais ambicioso.
Duciomar Costa nos pareceu uma figura despreparada, frágil e sem capacidade de liderança. De certa forma criamos uma caricatura dele e acabamos acreditando nela. O episódio do diploma falso de médico nos convenceu que aquele sujeito, além de não possuir qualquer senso de ética, era simplesmente ridículo. Um idiota que certamente "daria com os burros n'água".

Entretanto, o que vemos ao final de seu governo é que ele foi capaz de constituir em torno de si o mais amplo e poderoso arco de alianças de forças políticas e econômicas que se assenhoraram do Estado por meio de assistencialismo mesclado com autoritarismo, corrupção e nepotismo, e que auferiram vultosos lucros com a mercantilização do espaço urbano. De um modo geral podemos dizer que estão com Duciomar os capitais imobiliário (incorporadoras, latifundiários urbanos e imobiliárias) e financeiro (bancos e financeiras), empresários (construção civil, transporte, prestadoras de serviço, proprietários de redes de supermercados, grupos que comandam shopping centers etc.), a mídia corporativa e ainda possui influência nada desprezível sobre o Judiciário. Além disso, conta com forte apoio de grupos religiosos (alguns extremamente conservadores), lideranças comunitárias e sindicais, partidos fisiológicos e outros. Evidentemente que isto ocorreu em outras administrações municipais de direita, mas tenho dúvidas que algo semelhante com essa amplitude e capacidade de articulação haja existido.

Duciomar se tornou o homem de confiança da direita "tupiniquim". Uma das suas principais lideranças, e nem a possível derrota de seu candidato vai abalar essa condição. A menos que ocorra uma reviravolta no Judiciário, que os movimentos sociais urbanos saiam de sua condição letárgica, ou que as forças que assumam a prefeitura resolvam fazer uma devassa no governo capitaneado pelo PTB.

Edmilson Rodrigues: esperança de dias melhores para Belém.
A oposição na Câmara de Vereadores foi incapaz de criar grandes embaraços ao atual prefeito. Não podemos negligenciar o fato de que o mesmo detinha o controle do legislativo. Contudo, também não temos como esquecer as alianças estabelecidas entre o PT e Duciomar para viabilizar a campanha pela reeleição de Ana Julia, bem como para garantir a vitória de Dilma Roussef no Pará.

Ao que tudo indica, Dudu terminará seu mandato mais rico, mais influente e ainda mais ambicioso. Como diria uma das personagens do seriado Chaves: "Quem poderá nos salvar?".

Creio que o candidato mais bem preparado para fazer frente a esse bloco de poder que se apossou da prefeitura é Edmilson Rodrigues (PSOL), mas isso será objeto de um outro post.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Adeus, PT!

Ainda a pouco entreguei meu pedido de desfiliação ao Diretório Municipal do Partido dos Trabalhadores (PT). Oficialmente permaneci vinculado ao PT desde 1982. Portanto, dos meus 45 anos de vida, 30 foram como integrante desse partido. Contudo, desde 1997 já não tinha militância partidária, mas apenas participação esporádica em alguns eventos.



Entrei no PT em meio à campanha eleitoral. Naquele longínquo 1982 fiz campanha para militantes do meu bairro e pelo "voto camarão". Explico. É que houve uma manobra interna do grupo do candidato a governador e uma parte da militância resolveu não fazer campanha para o majoritário. Daí o termo "voto camarão": sem o cabeça da chapa.

Fui membro do grupo denominado "Articulação". Em 1985 um coletivo de petistas da Sacramenta, bairro em que vivo até hoje, se juntou a outros do município de Santarém, cujos expoentes naquela época eram Geraldo Pastana, um grande amigo e atualmente prefeito do município de Belterra, Avelino Ganzer, então vice-presidente nacional da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e Valdir Ganzer, que em 1986, juntamente com Edmilson Rodrigues, compôs a bancada do PT na Assembleia Legislativa do Pará. Aliás, os dois conseguiram aprovar importantes artigos na Constituição Estadual de interesse dos(as) trabalhadores(as).

Esse grupo evidenciava diversas influências: marxista (de base maoista), cristã (Teologia da Libertação), do recente movimento sindical do ABC paulista e da pedagogia do oprimido formulada pelo educador Paulo Freire. Os outros grupos políticos que integravam o PT do Pará não sabiam ao certo como nos rotular, pois fomos chamados de o "braço do Sendero Luminoso" (grupo guerrilheiro do Peru de tradição maoista) até de agentes infiltrados. O fato é que apostávamos muito fortemente nos camponeses como atores sociais importantes para o processo de construção do socialismo no Brasil, e a maior parte da esquerda ortodoxa via o campesinato como "um movimento pequeno burguês". Somente com o surgimento do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) anos mais tarde, além da crescente capacidade de mobilização do "mundo rural" é que essa esquerda começou a mudar de opinião. É engraçado porque até hoje nenhuma das chamadas "revoluções socialistas" foram efetivamente realizadas pelo operariado. Em todas elas o campesinato teve papel fundamental, mesmo na Russia, em 1917.

Paulo Freire: um dos mestres da educação popular.
Também nos orientávamos pela ideia de que para organizar o povo era necessário estar no meio dele, viver como ele, sentir o que ele sentia. Daí a preocupação enorme que tínhamos com a educação popular. Defendíamos a tese de que ninguém conscientiza ninguém, as pessoas se conscientizam ao participarem do processo de construção de uma nova sociedade. Há algo mais "Paulo Freire" do que isso? Essa perspectiva guardava influência cuja origem era a Ação Popular (AP), antes desta se vincular ao Partido Comunista do Brasil (PC do B) durante a ditadura militar. Criamos o nosso próprio "Método de Trabalho de Base". O Ranulfo Peloso, por exemplo, contribuiu anos mais tarde na elaboração de muitos materiais pedagógicos do MST que, sem dúvida alguma, incorporaram algumas das contribuições desse método.

Por outro lado, tínhamos preocupação em não permitir o surgimento de desigualdades no grupo, ainda mais depois que alguns membros elegeram-se para cargos nos legislativos municipal e estadual, além de prefeituras. Nossa política interna de salários era rigorosa: os militantes com cargos no legislativo ou no executivo, por exemplo, recebiam apenas quatro salários mínimos e os demais militantes liberados recebiam dois. Os salários eram administrados pelo grupo. Tal prática funcionou por um bom período, mas depois se tornou fonte de conflitos e de intrigas. A tese era clara: não podíamos nos afastar do povo. Certo ou errado, maluca ou utópica, tal concepção tinha um sentido muito grande de generosidade, de entrega, de fazer as coisas por ideal e não por dinheiro.

Alguns membros do coletivo participaram de cursos em Cuba. A disciplina interna era muito valorizada. Lembro da vez em que o Pedro Peloso (o hoje deputado Airton Faleiro o acompanhou por solidariedade) teve que carregar um botijão de gás do Centro de Formação Chico Roque, na comunidade São Brás, até a sede de Santarém por que o mesmo esqueceu de comprar a botija e não havia luz no local. Creio que são 12 km de distância. Isto em 1985. Lembro disso com certa ironia, pois os grupos petistas que se intitulavam "revolucionários" nem de perto chegavam ao nosso grau de disciplina.

Diretas Já!
Durante todo esse período vivi momentos de profunda tristeza, como os assassinatos de lideranças valorosas e, acima de tudo, bons amigos, entre eles o Dema (na Transamazônica) e Jaime Teixeira. Também tive muitos momentos de felicidade, como a luta pelas Diretas Já, a conquista de diversos sindicatos de trabalhadores rurais, as grandes mobilizações populares em Belém, como as realizadas pela Comissão dos Bairros de Belém (CBB) e o Movimento pela Urbanização Popular (MUP), na Sacramenta, que na década de 1980 já lutava pela macrodrenagem da Bacia do Una.

Não posso esquecer das lutas que desenvolvíamos no meu querido bairro. Nos confrontamos com a família Ferro Costa e conquistamos o titulo de posse para mais de 5.000 famílias. Enfrentamos o Ministério da Aeronáutica e conseguimos que a população permanecesse na área que hoje é conhecida como Malvinas  (no caminho do aeroporto Julio Cesar), bem como em toda extensão que vai desde o antigo galpão da Transporte Aéreo da Bacia Amazônica (TABA),  na Tv. Dr. Freitas com a Av. Pedro Miranda, até a Pedro Alvares Cabral. Nas Malvinas fazíamos mutirão todos os finais de semana, roçando a área para que fossem construídas casas. A Polícia da Aeronáutica, fortemente armada, derrubava as casas durantes o dia e a população reerguia tudo durante a noite. Na área que hoje é o Canal do São Joaquim (da Av. Julio Cesar até a Artur Bernardes) lutamos contra o Exército e a remoção forçada da população para o Conjunto Promorar, hoje chamado Providência (bem perto do aeroporto). Fomos vitoriosos em todas essas lutas.

Leonardo Boff: um dos expoentes da Teologia da Libertação.
Muito disso devemos aos padres João Beuckenboon e Tiago Van Winden. Não esqueço das palavras do Pe. João quando um grupo do Apostolado da Oração, de linha conservadora, questionou-o sobre o porquê de os/as integrantes da Pastoral da Juventude estarem envolvidos(as) com a organização dos(as) moradores(as) do bairro e com a Teologia da Libertação. Disse ele: "Eu não preparo os jovens para a paróquia e sim para o mundo". Guardo um sentimento de gratidão e apreço por esses dois padres. Muito do que tenho de bom dentro de mim devo a eles. O PT do Pará também deve.

Fazer campanha eleitoral para os candidatos petistas era um prazer naquela época. Passávamos horas preparando manualmente os materiais de campanha (quem não lembra do reco-reco, da máquina de estencil, do mimeógrafo a álcool?). Eu e outros amigos chegávamos a trabalhar dezoito horas por dia. Perguntem ao Carlinhos Matos, à Regina Ferreira, ao Claudio Bordalo, ao Jorginho Bastos, à Julinha, ao Lucídio, ao Alberdan Batista, ao Domício Nunes, ao Gilberto Saldanha, ao Getúlio Jales, ao Carlito Aragão e tantos(as) outros(as). Carregávamos escadas, tintas, latas, goma e pincéis pela madrugada. Enfrentamos os cabos eleitorais do antigo PFL no tapa. Em 1986, o grupo que fazia campanha não tinha nem o que comer. A esposa do Nazareno Noronha, comovida com a nossa situação, nos arranjou um saco (de 60 kg) com pescoço de galinha. Foi a nossa refeição por muitos dias. Lembra, Toninha Arcanjo? Também enfrentamos as forças da repressão em plena ditadura militar quando o então presidente Figueiredo veio a Belém. Muitos(as) companheiros(as) ficaram cercados(as) pelas tropas de choque na Igreja da Santíssima Trindade.

Com o finado amigo José Ricardo (o famoso Cabinho) passei um dos maiores "perrengues" da minha vida. Na esquina da Passagem "B" com a Tv. Enéas Pinheiro fomos atacados por um "anti-petista" que avançou sobre nós e outros amigos com uma faca na mão em plena madrugada. Ao fugirmos nos deparamos com um policial que atirou a queima-roupa na nossa direção. Acho que nunca corri tanto na minha vida. Tempos depois o policial veio a participar da luta que desenvolvemos pelo projeto de macrodrenagem.

Vivi também fatos pitorescos. Certo dia o amigo Carlinhos Boução, então membro do Partido Revolucionário Comunista (PRC), convidou-me para ir até á casa dele a fim de lermos juntos as resoluções  do congresso do partido. Quando estava na parada de ônibus, um amigo meu de infância que trabalhava na Polícia Civil ofereceu-me carona. Qual não foi a surpresa do Boução quando o carro da polícia estacionou na porta da casa dele. Nem sei se ele lembra desse episódio.

Outro que me ocorre foi quando a prelazia de Cametá organizou um debate sobre a constituinte com candidatos a deputado federal, em 1986. Estavam lá o Geraldo Pastana, o Humberto Cunha, o Ademir Andrade e o Gerson Peres. Terminado o evento um grupo de partidários do Gerson Peres avançou sobre o Humberto Cunha ofendendo-lhe com palavrões. Lembro de uma figura que abriu uma revista na qual havia uma grande ilustração com a foice e o martelo. O problema era que a rua onde se realizou o evento estava em obras e havia muitos paralelepípedos soltos. Alguns mais exaltados pegaram pedras e ameaçavam jogar no Humberto. Passei a bater fotos da situação e quando percebi um sujeito mal encarado veio na minha direção. Corri e mais adiante parei. Alguns companheiros petistas vinham logo atrás e me senti protegido. De repente a figura passa por mim de bicicleta e alguns metros depois a atira no chão. Quando me dei conta o cara estava com um revólver calibre 38. Apontou a arma pra mim e disse: "tu vai morrer seu filho da puta". Somente deu tempo de mirar a janela de uma casa e correr em sua direção. A proprietária assustada fechou a mesma imediatamente. Encurralado peguei alguns socos, tive os óculos quebrados, mas me recusava a entregar a câmera. Quando a figura apontou a arma novamente na minha cara a galera do PT chegou gritando, a senhora abriu a janela e eu dei um pulo olímpico para dentro da casa. Estava salvo.

Há uns seis anos atrás estava com o meu filho caçula na loja Magazan, da Doca de Souza Franco, onde encontrei o Gerson Peres e uma criança que parecia ser o neto dele. Disse ao meu filho Lucas: "olha lá o cara  cujo capanga quis atirar em mim". Ele imediatamente falou: "vai lá pai, dá-lhe uma surra nele". Naquele dia eu fui acometido de uma crise de riso.

Bem, eu poderia escrever uma quantidade enorme de laudas relatando muitas experiências que vivi no PT. Boas e más. Quem sabe um dia publico um livro de memórias. Reconheço que devo muito a esse partido. Meus sentimentos de liberdade, solidariedade, justiça e outros se consolidaram na militância política. Conheço dezenas de pessoas espalhadas por essa Amazônia que acreditam no PT, e que fazem dele um importante instrumento da luta política. São dedicadas, honestas e comprometidas com a transformação social. Todavia, não acredito mais que haja qualquer possibilidade de mudar os rumos do partido, pois as mesmas não têm poder para alterar a lógica dominante nele.

No passado, tínhamos os trotskistas, os "igrejeiros", os leninistas, os maoistas e outros agrupamentos políticos que se digladiavam para definir a linha partidária. Hoje, os grupos se organizam em torno dos mandatos. É o grupo do deputado "X", do vereador "Y". Cada um aposta em estratégias que lhes garantam a renovação dos próprios mandatos. Esse foi um dos motivos que me fizeram abandonar a Articulação em 1997 e deixar de ter uma vida partidária a partir de então.

Em contrapartida, temos petistas históricos que estão sendo criminalizados(as) por defenderem os direitos humanos. Vide o que acontece em Altamira com as pessoas que lutam contra Belo Monte. A legislação ambiental está sendo destruída para dar vazão aos interesses dos grandes grupos econômicos que querem se apoderar de vastas extensões de terras e dos recursos nelas contidas. A própria Constituição Federal vem sendo modificada para garantir a entrada de mineradoras e madeireiras em terras indígenas. Áreas de preservação são reduzidas (Floresta Nacional de Itaituba I e II) para viabilizar a construção de hidrelétricas nos rios Teles Pires e Tapajós de grande interesse das empresas do agronegócio (ADM, Bunge, Maggi, Cargil etc.). O desenvolvimentismo é a nova "utopia" de grande parte da esquerda no comando do país. Infelizmente.

A destruição provocada por Belo Monte
Saio, mas não renego as minhas origens. Tenho muitos(as) amigos(as) no PT e farei de tudo para não perder essas amizades. Não penso em associar-me a qualquer outra agremiação partidária, mas não deixarei de fazer política. Vou entregar-me mais do que nunca a fortalecer a resistência contra o atual modelo de desenvolvimento, e humildemente contribuir para manter acesa a utopia por uma nova sociedade, pelo fim do capitalismo.

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Criminosos que incriminam

Você deve estar acompanhando o noticiário sobre a renhida resistência de indígenas, ribeirinhos, mulheres, jovens, agricultores familiares, pastorais sociais e outros segmentos contra a construção da hidrelétrica de Belo Monte, lá em Altamira (PA). Pois bem, há um grupo de lideranças que está sendo criminalizado por conta da última ocupação no canteiro de obras da Norte Energia. O absurdo da situação é que pessoas que sequer encontravam-se no município durante o ato dos movimentos sociais foram denunciadas pela Polícia Federal. É o caso, por exemplo, da Antonia Melo, liderança do movimento de mulheres daquela região.

Antonia Melo
Quando ocorreu o ato a Antonia Melo estava no Rio de Janeiro participando da Cúpula dos Povos durante a Rio+20, abordando  justamente as violações contra os direitos humanos provocadas pela ação/omissão dos governos federal, estadual e municipal, bem como pelo consórcio das empresas responsáveis pela construção da barragem. Ou seja, a denúncia da PF não se baseou em fatos, mas tão somente com a intenção de intimidar, pressionar, impor o medo naqueles(as) que lutam contra a estratégia suicida das elites políticas e empresariais que querem garantir o acesso, uso e controle irrestrito dos recursos naturais existentes na Amazônia aos grandes grupos econômicos nacionais e transnacionais, mesmo que isso provoque a desestruturação dos modos de vida de comunidades inteiras, a destruição da floresta, a contaminação da água e do ar, o inchaço das periferias urbanas, a falência do serviço público (incapaz de atender o aumento exponencial das demandas), o aumento das diferentes modalidades de violência, a expansão do consumo das drogas, o desaparecimento de espécies da fauna e da flora etc.

Muitos falam sobre a ausência do Estado na Amazônia. Nada mais equivocado, pois, historicamente, o Estado brasileiro sempre se fez presente quando os interesses dos poderosos correram algum risco. Foi assim na Cabanagem, no assassinato de Quintino Lira pela Polícia Militar durante o primeiro mandato de Jader Barbalho no governo estadual, na proteção às propriedades dos latifundiários do Sul e Sudeste do Pará - que, diga-se de passagem, foram obtidas em grande parte através da grilagem de terras públicas -, no remanejamento forçado de populações ribeirinhas, indígenas ou de agricultores familiares para a construção das hidrelétricas de Samuel (RO), Balbina (AM) e Tucuruí (PA) e agora em Altamira, entre tantos outros exemplos. O Estado se faz ausente para alguns setores da sociedade amazônida, nunca para os poderosos: Federações das Indústrias, Federações da Agricultura, Zona Franca de Manaus, Vale, ALBRAS, ALUMAR, Norte Energia, Consórcio Energia Sustentável (RO), Consórcio Madeira Energia (RO), Maggi, Cargil, ADM, Eletronorte, Petrobras, madeireiras, agronegócio, Daniel Dantas, ALCOA etc.

Cerca de 200 índios Xikrin e Juruna estão acampados desde o dia 21
 nas obras da Usina Hidrelétrica de Belo Monte 
Enquanto os representantes de organizações da sociedade civil são alvo de inquérito policial em Altamira, o Consórcio Norte Energia ignora as mais de 40 condicionantes a que foi obrigado acatar para que obtivesse a licença de instalação do canteiro de obras. Nesse caso, nem os governos e nem os poderes legislativos tomam as rédeas da situação para que o Consórcio cumpra com o que foi determinado. Prevaricam, fecham os olhos para as atrocidades cometidas contra a população (casas são derrubadas para forçar os moradores a saírem do local; escolas, hospitais e outros equipamentos públicos não foram construídos, as indenizações pelas benfeitorias dos ribeirinhos são baixíssimas, para citar apenas alguns exemplos), concedem incentivos fiscais e tributários indecentes, descumprem a legislação ambiental... Ou seja, quem comete crimes é quem incrimina. E o culpado é sempre o mordomo.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Eleição de mentirinha?

Recentemente ocorreram novas eleições na Grécia e o partido conservador Nova Democracia foi vitorioso. Este deverá formar o governo em aliança com o Partido Socialista (Pasok). Ambos defendem a agenda neoliberal imposta pela Alemanha e FMI à Europa: corte nos gastos sociais, revisão das leis trabalhista e previdenciária, austeridade etc.. Sem dúvida alguma os dois partidos estão entre os principais responsáveis pela situação caótica em que vive a Grécia e a extrema dificuldade porque passa sua população. Enquanto os bancos recebem fabulosas quantias de euros (aos bilhões) para se "salvar", a grande maioria dos gregos vive dias difíceis por conta do desemprego, do aumento da violência, do definhamento da democracia.

Alguém poderá objetar a afirmação acima dizendo que a democracia, apesar das turbulências sociais e econômicas, está preservada na Grécia já que a Nova Democracia chega ao poder amparada na "vontade das urnas". Contudo, como nos ensina o dito popular, o"buraco é mais embaixo". A Alemanha e outros países europeus, o Fundo Monetário Internacional (FMI), o conglomerado da mídia internacional e instituições financeiras do "velho continente" interviram de forma aberta nas eleições gregas, ao baterem na tecla de que a vitória do partido de esquerda Syriza levaria a Grécia a abandonar o euro enquanto moeda única, bem como resultaria no aprofundamento da crise que já é bastante grave. Eis o que nos diz um  artigo publicado recentemente no site OperaMundi sobre essa questão:
A crise da dívida iniciou entre 2004 e 2009, quando a Nova Democracia estava no poder e não só multiplicou por dois a dívida grega, como também maquiou as contas do país: apresentou um déficit de 6% do PIB quando, na verdade, este alcançava 16%. A Europa celebrou segunda-feira a vitória da Nova Democracia como uma salvação do euro. Nada pode ser mais falso: nenhum partido, nem sequer a coalizão de esquerda radical Syriza, optou por sair da moeda única. Berlim e os meios de comunicação fizeram um grandioso trabalho de manipulação: “não acreditamos neles, por isso votamos por Nova Democracia tapando o nariz”, dizia ontem um jovem eleitor da ND. O mais assombroso reside no fato de que a Europa pôs suas fichas na casa de um partido implicado até os ossos na debacle e em um homem cuja trajetória está cheia de variações incongruentes. 
O que está sendo vivenciado pela Grécia é o padrão que passou a vigorar, em especial, a partir da década de 1980 no mundo. A hegemonia neoliberal se materializou porque os países mais poderosos do planeta conseguiram fazer com que suas agendas política e econômica fossem assumidas pela maioria das nações sem grandes questionamentos. Esse processo contou com o envolvimento estratégico do FMI, Banco Mundial, Organização Mundial do Comércio (OMC), grandes grupos de comunicação, agências de classificação e outras instituições importantes. Bastava que um candidato ou partido sugerisse algo que se contrapusesse a um algum ponto de interesse da banca internacional, das transnacionais ou do G-7 para que fosse "implodido" por "comentaristas" políticos e econômicos, partidos e segmentos sociais conservadores e grupos empresariais. A perseguição se mostrava implacável, pois consideravam inadmissível o questionamento aos preceitos neoliberais: Estado mínimo, abertura comercial, privatização das empresas públicas, liberdade para a entrada e saída de capitais, cortes nos gastos governamentais, focalização das políticas públicas, desregulamentação do setor financeiro, revisão de direitos sociais etc.

Partido Nova Democracia

Quando um candidato ou partido não era considerado "confiável" pelo "mercado" as ameaças se apresentavam de diferentes formas: saída do capital estrangeiro, avaliação negativa elaborada pelas agências de classificação, especulação, aumento do dólar... Ou seja, só havia uma alternativa: ou o concorrente se enquadrava ou estava fora do jogo. Programas de governo se consolidaram como meras peças de ficção, pois os compromissos com a manutenção das políticas macroeconômicas é que realmente valiam, independentemente do que o/a candidato(a) dissesse à população. As próprias eleições mais pareciam rituais formalmente organizados, pois os "programas governamentais" já se encontravam definidos bem antes pela banca internacional e seus pares. Estes eram os "verdadeiros" eleitores.


Alexis Tsipras um dos líderes da Coalizão da Esquerda Radical Syriza
Hoje, há muitos questionamentos ao neoliberalismo. Todavia, isto não significa que seus pressupostos foram completamente abandonados. A situação no Brasil, no Peru, na Bolívia, na Espanha, em Portugal, na Grécia e em muitos outros países mostram o contrário.

A realização de eleições regulares, livres e transparentes são importantes para a consolidação da democracia em qualquer nação. Contudo, as últimas eleições na Grécia mostram que nem sempre é assim que a coisa funciona na medida em que os que realmente decidem os destinos dos gregos não possuem título, não entram nas filas e nem nas cabines de votação. A eleição foi de mentirinha?

O povo vai às ruas na Grécia

segunda-feira, 28 de maio de 2012

A confraria dos canalhas

Vamos fazer um exercício bem simples: Suponha que eu seja uma importante autoridade da República e deliberadamente minto para, mais uma vez, produzir uma crise institucional a fim de ocultar ações e omissões da minha parte que, se descobertas, podem, inclusive, causar o meu impeachment. Como você qualificaria meu ato? Agora imagine que eu seja um jornalista reconhecido e mesmo sabendo que uma notícia publicada por mim omite relevante informação que, se divulgada, comprovaria que o que escrevi não passa de mera armação para tentar ludibriar a opinião pública e, dessa maneira, acabar protegendo criminosos que se infiltraram no aparelho do Estado. Que conceito você teria de mim?


Na minha humilde opinião em ambos os casos as pessoas envolvidas mereceriam ser chamadas de canalhas. Segundo o dicionário, "canalha" significa "pessoa ruim" ou "sem-vergonha". Convenhamos, para realizar os atos descritos acima somente uma pessoa sem qualquer vergonha na cara seria capaz disso.


O Brasil de hoje vivencia uma guerra suja que, infelizmente, a maioria da população não percebe. Uma guerra sem trégua levada a cabo pelas principais empresas de comunicação do país e seus aliados no judiciário e no legislativo. Tudo isso porque a Operação Monte Carlo da Polícia Federal revelou a captura do aparelho do Estado nas suas diferentes instâncias (executivo, judiciário, legislativo e ministério público) por parte do grupo criminoso comandado pelo bicheiro Carlinho Cachoeira. Todavia, as investigações da PF também levantaram fortes indícios de que durante muito tempo houve complacência, e mesmo o estabelecimento de parcerias entre aquele bando e determinados setores da imprensa brasileira.

Tal parceria tinha mão dupla: 1) O bando de Carlinho Cachoeira grampeava ilegalmente autoridades e empresários concorrentes, repassava as informações a um grupo seleto de "empresas jornalísticas" e estas reverberavam em revistas, jornais e nas TVs os áudios e vídeos obtidos de forma criminosa. A quadrilha saia ganhando com a exclusão dos concorrentes de processos licitatórios e de abertura de inquéritos contra os mesmos, assim como com a queda de gestores públicos que de alguma forma contrariavam os interesses do bando; 2) As "empresas jornalísticas" ganhavam cada vez mais espaço na vida pública nacional com a divulgação de escândalos reais e armados, além de colocar sob alta pressão as autoridades do Estado brasileiro considerados seus desafetos.

A promiscuidade entre os interesses da mídia corporativa e da quadrilha de Carlinho Cachoeira fica cada vez mais evidente à medida que as informações levantadas pela PF vão sendo sistematizadas e aprofundadas as investigações. O esforço da "grande imprensa" para abafar as notícias que lhe desagrade tem sido brutal, bem como sua determinação para evitar a todo custo que a CPMI destrinche a parceria criminosa estabelecida entre esta e o bicheiro. Todavia, como não controlam a blogosfera, as informações sobre as "peripécias" daquele bicheiro, do senador Demóstenes, de políticos, empresários e de jornalistas circulam livremente pela rede, rompendo as barreiras erguidas por Marinhos, Frias, Civitas e outros.

Nos últimos anos a sociedade brasileira viveu no fio da navalha de uma crise institucional. É notório que as "famiglias" que comandam os principais veículos de comunicação do país não aceitaram a derrota de Serra e de Alckimin para a presidência da República. Desde então estamos numa espécie de eterno "terceiro turno" das eleições. Para tanto se tornaram a real oposição aos governos Lula e Dilma, já que o PSDB e o DEM estão em frangalhos, posição assumida abertamente pela presidente da Associação Brasileira de Jornais. Contudo, também têm contado com valiosos préstimos de altas figuras do judiciário, cuja última edição do boletim informativo e depreciativo da oposição, mais conhecido como revista VEJA, bem demonstrou.

É essa associação para o crime e para a desestabilização institucional do país que chamamos de "Confraria dos Canalhas". Para identificá-los basta dar uma olhada nos editoriais dos principais jornais, nas matérias dos jornalísticos da noite e dos finais de semana. Ah, também não deixe de acompanhar o que dizem alguns integrantes do judiciário e dos líderes da oposição conservadora no Congresso Nacional.

O Brasil somente será uma democracia quando os itens da Constituição Federal que impedem o monopólio da informação forem efetivamente regulamentados e colocados em prática.

PS: Recomendo a leitura do maravilhoso texto premonitório do jurista Dalmo de Abreu Dallari.
http://www.viomundo.com.br/politica/o-replay-do-leitor-giorgio-dalmo-dallari-sobre-gilmar-mendes.html