sábado, 18 de agosto de 2012

Sacramenta: um bairro de lutas e de muita história.

Moro numa parte do bairro da Sacramenta que anos atrás era quase que completamente alagada. É o que chamamos em Belém de "baixadas": regiões da cidade que ficam abaixo do nível dos rios que a circundam. Minha casa, assim como a grande maioria, era de madeira, construída sobre o Canal da Pirajá, anteriormente um dos muitos igarapés que atravessavam a capital paraense. Quando chovia as águas do igarapé invadiam nosso banheiro e por pouco não tomavam conta do andar térreo. Durante o inverno a situação piorava. Tínhamos que ir para o trabalho com os sapatos nãos mãos, pisando na lama até o momento em que parávamos em alguma casa mais adiante para lavarmos os pés e seguirmos viagem.

Baixada de Belém - Bacia do Una
No dia que o meu filho Alexandre completava cinco anos caiu uma chuva torrencial que alagou completamente a Rua Nova, onde moramos até hoje. A altura da água chegava no joelho.  Tentei persuadir a Regina a mudar o local da festa para a casa de uma das minhas irmãs, mas ela não aceitou dizendo que a comemoração tinha que ser na nossa residência. Ela chorava copiosamente, pois temia que ninguém participasse da comemoração. Qual não foi a nossa surpresa quando os/as amigos(as) começaram a chegar, com suas calças e saias suspensas até o joelho, sapatos nas mãos. Foi um momento de grande alegria, daqueles inesquecíveis.

No local o Hotel Regente, na década de 60 foi a sede
da União Acadêmica Paraense (UAP).
Seu prédio e teatro foram destruídos sob
 o comando do coronel José Lopes de Oliveira
Durante a ditadura militar e principalmente na década de 1980 se constituíram fortes movimentos sociais urbanos que lutavam por melhores condições de vida da população da periferia. A Sacramenta era um dos bairros mais mobilizados à época. Haviam três grandes lutas se desenvolvendo no período:  1) Na Área da Aeronáutica (desde o início do Canal da Pirajá, na Av. Dr, Freitas, até área que se convencionou chamar Malvinas, às margens do Canal São Joaquim). Aliás, nesta última os nomes das ruas são de pessoas que estiveram à frente das lutas pela  permanência da população no local, ou das que apoiaram as ações do antigo Centro Comunitário Primeiro de Setembro: Claudio Bordalo, Carlos Augusto dos Santos Silva (o Guto), Raimundo Jorge Pires Bastos, Pe. João  Beuckenboon, Dr. João Marques e outros; 2) Na Área Promorar (Canal do São Joaquim) contra as tentativas do Exército de remanejar compulsoriamente centenas de famílias para o que é hoje o bairro Providência, próximo ao aeroporto, e; 3) Na área denominada Ferro Costa, por conta da família (latifundiários urbanos) que se dizia proprietária da região onde moravam cerca de 5.000 famílias.

Na Área ferro Costa travamos  intensas disputas com Jader Barbalho e seus aliados, que incluía naquela época a militância dos Partidos Comunista Brasileiro (PCB) e do Brasil (PC do B). Jader e seus assessores mais próximos estimularam gangues de arruaceiros a nos enfrentar nas ruas. Então, era muito comum os choques violentos, pois eles nos atacavam quando desenvolvíamos a mobilização da comunidade para lutar pela desapropriação da área e a titulação das posses. É impossível não lembrar de pessoas valorosas  que se empenharam de corpo e alma nessa luta: seu Laudemar, Carlito Aragão, Alberdan Batista, Marciana, Irene, os/as integrantes do Movimento Jovem da Passagem "E"/MOPAE (Carlinhos Matos, Nei, Neia, Souza, Rosa e outros) e da Juventude Unida na Caminhada pela Libertação do Povo/JUCALP (Domício, Cabinho, Nana, Maria, Rosa, Lucia, Lucica, Graça e outros), ambos grupos jovens da Paróquia de São Sebastião que, inspirados na Teologia da Libertação, se integravam às lutas sociais. Também é preciso lembrar da participação ativa da base social dos Centros Comunitários Irmãos Unidos e Boa Esperança.

Nas manifestações organizadas pela Comissão dos Bairros de Belém (CBB), como as grandes passeatas pelas ruas do centro, as organizações comunitárias da Sacramenta estavam entre os destaques. Chegávamos fazendo muito barulho: "Aguenta, aguenta, aguenta, chegou a Sacramenta!", bradávamos com todas as forças. Íamos em passeata do bairro até o centro para nos juntar aos outros movimentos sociais.

Na década de 1980 criamos a partir da antiga Área Ferro Costa o Movimento pela Urbanização Popular (MUP), que tinha como objetivo estratégico a urbanização da área influenciada pelo Canal da Pirajá. Moradores e moradoras como a Doninha, seu João Trindade, dona Lucinha, dona Maria, dona Rosa, Gilberto Saldanha, Regina Ferreira, seu Benedito, Jorge Cabeção, seu Aluísio e esposa, Pedro Peloso, Varela e outros(as) merecem todas as homenagens pelo que fizeram.

Não é possível negar a contribuição do MUP para a constituição posterior do Movimento em Defesa do Projeto de Macrodrenagem, que reunia centros comunitários de diferentes bairros da Bacia do Una, bem como do Movimento em Defesa dos Projetos de Saneamento, que incorporava entidades de Ananindeua que atuavam nas áreas onde estavam sendo (mal) executados o PROSEGE e o PROSANEAR, projetos de saneamento financiados pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e Banco Mundial (BIRD), respectivamente.

Na luta para melhorar as condições de vida na nossa área realizamos mutirões, assembleias, ocupação da Secretaria Municipal de Saneamento e muitas outras iniciativas. Lembro da vez em que Carlinhos Matos, Gilberto Saldanha, Domício Nunes e eu entramos em baixo do piso da retífica que se localizava bem no encontro dos canais da Pirajá e do Galo, bem ali no bairro do Acampamento, próximo à famosa ponte do Galo. Pois bem, tivemos que tomar "alguns" goles de cachaça pra enfrentar a empreitada. Era tanta sujeira, excrementos (merda, mesmo!), madeira, lata enfim, muito lixo, que impedia que as águas do Pirajá corressem livremente. O que era um grande problema quando se juntava maré alta com chuva torrencial. Tínhamos à época em torno de 20 anos. Lembranças da juventude...

É o que vejo a partir da minha casa
Hoje, olho do terraço da minha casa e vejo prédios altíssimos "se aproximando" da área em que moro. Vejo a população de menor poder aquisitivo saindo do local, assim como as casas de madeira sendo substituídas pelas de alvenaria. Uma parte considerável da atual população nem deve saber o que centenas de moradores e de moradoras passaram para garantir que a área fosse urbanizada. Devo confessar, porém, que tenho orgulho do que eu e tantos(as) outros(as) fizemos. Sinto que uma parte de mim está em cada rua, nesse pedaço de chão que, infelizmente, o capital imobiliário que tomar para si. Tudo sob as bençãos de Dudu e sua trupe.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Um tiro, outro tiro e mais uma vida que se foi...

Emerson vestido com a camisa do
"mais querido"
Ele tinha apenas 29 anos. Pai de três filhos do primeiro casamento e mais uma menina do segundo. Na noite do sábado, após deixar dois sobrinhos na casa do irmão, foi covardemente atingido por duas balas na nuca. Segundo dizem, o criminoso ainda efetuou mais dois disparos bem próximo do rosto, mas o revólver travou. Logo após o assassinato fugiu com o comparsa numa bicicleta O nome da vítima: Emerson.  Esposo de uma das minhas sobrinhas.

Local do crime: área próxima ao Canal do São Joaquim, na Sacramenta. A área é considerada "zona vermelha" pela Polícia Militar dada a intensidade de diferentes modalidades de  violência: roubos, assassinatos, furtos, agressões, estupros etc.

A família ainda levou a vítima para o Pronto Socorro Municipal da 14 de Março, mas a mesma já chegou sem vida. E mesmo que estivesse viva fatalmente padeceria numa maca no corredor por causa da superlotação e da greve dos(as) funcionários(as).

Emerson era pai da minha linda sobrinha-neta Isabelle, carinhosamente chamada de "Bebelle". Ela tem apenas três anos. Não verá mais o pai, que era uma figura do bem. Torcedor do Remo, trabalhador, alimentava planos para a casa nova. Era funcionário da CTBEL e à noite fazia "bicos" como mototaxista. O corpo estirado no chão ficou encharcado de sangue.

Bebelle e meu filho Alexandre, o "padinho".
Corpo aliás que só foi entregue à família para o velório na tarde do domingo, aumentando ainda mais o sofrimento de todos(as) que o aguardavam para as últimas homenagens. Durante o período que esperamos pelo corpo fiquei observando tudo o que ocorria à minha volta.

Da casa dos pais do Emerson dá pra ver a caixa d'água do Conjunto Paraíso dos Pássaros, assentamento que recebeu as centenas de famílias remanejadas compulsoriamente pelo Projeto de Macrodrenagem da Bacia do Una. De paraíso, apenas o nome. Ironia tucana para uma situação precária. Entre a casa onde me encontrava e a caixa d'água, muito mato, muito lixo, muito abandono. Por várias vezes vi pessoas levando seu lixo e o jogando na beira do canal. Também vi urubus, gatos, cães e um idoso revirando os restos. Sim, um homem de idade avançada catando sobras.

Também vi muitas crianças. Algumas claramente desnutridas, magras, de baixa estatura, cabelos desgrenhados, brincando na vala com suas "embarcações", ou num velho velocípede "incrementado" que levava sempre um pequeno ser a toda velocidade. Entre as brincadeiras as que envolviam tiros e revólveres faziam parte do "cardápio" da imaginação mirim.

Vi pré-adolescentes sentados embaixo das torres de alta tensão ouvindo o "treme" nos seus celulares, todos requebrando animadamente ao som dos mais novos sucessos do gênero. Um deles me chamou especial atenção porque se parece muito com um jovem que vi crescer, que era amigo dos meus filhos, que me chamava de tio e que sempre demonstrou muito carinho por todos aqui de casa. Agora, está confinado num presídio. Confesso que aquela situação me provocou uma forte dor no peito: de aflição, de tristeza, de revolta, de vergonha pelo que estamos fazendo, por ação ou omissão, às nossas crianças. Lembrei da licitação do governo estadual que pagou cerca de R$ 63,00 por uma xícara de café. Enquanto isso, não há coleta de lixo, não há creches, não há muita esperança ali, às margens do Canal São Joaquim.

Periferia de Belém
Conversei com o filho mais velho do Emerson. Uma figurinha centrada nas ideias, mas completamente desamparada, perdida, naquele momento. Estava perto quando ele falou sobre os tiros que ouviu, do medo que sentiu por lembrar que o pai saíra momentos antes, da queda da cama com o rosto no chão quando alguém bradou: "mataram o teu pai". Também ouvi a filha narrar as condições em que a mãe encontrou o corpo no chão. Foi de cortar o coração.

Quando o corpo finalmente chegou a situação ficou dramática: mãe, avó, irmãs, amigos(as) desmaiaram quase que ao mesmo tempo. Foi um corre-corre. Eu e meu filho carregamos a avó para a casa ao lado. Outros socorreram as demais. Vi a mãe do Emerson abraçar minha sobrinha, lamentando a dor que aquela morte lhe provocava.

Foi um domingo terrível. Nem vou falar sobre o estado do corpo. O que me dói até este momento que escrevo é lembrar que não vamos mais ver o Emerson, que ele não vai mais ao campo com a gente assistir os jogos do Remo, que a filhinha dele dificilmente vai lembrar dos momentos que viveram juntos.

Um tiro, outro tiro e uma vida que se foi... Um número na estatística. Revoltante!

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

E o Big Bang não foi o início?

A teoria do Big Bang
O Lasanha, como vocês todos(as) sabem, é interplanetário. Então, resolvi tratar agora de algo realmente grande. A maioria de nós leu, ouviu ou aprendeu na escola que este universo nasceu a partir de uma grande explosão: o Big Bang. Essa teoria ganhou fôlego com a descoberta do astrônomo estadunidense Edwin Hubble de que o universo encontra-se em plena expansão.

De acordo com a teoria do Big Bang, em algum momento remoto do passado ocorreu um fato extraordinário e dele resultou tudo o que está a nossa volta, inclusive nós mesmos. Portanto, também temos o cosmos dentro de nós compondo a nossa estrutura corporal. Não é fantástico?

Através de intrincados e complexos cálculos matemáticos atingimos a capacidade de saber o que aconteceu a menos de um segundo após a colossal explosão que nos trouxe até aqui. Contudo, ainda não somos capazes de explicar o que provocou a mesma. As controvérsias teóricas são muitas e parecem restritas a um mundo complemente estranho ao da maioria das pessoas.

Segundo Prigogine, dizer que o universo surgiu a partir de uma singularidade provoca diversos problemas, pois “a ciência só pode descrever fenómenos repetíveis. Se se deu um fenómeno único, uma singularidade como o Big Bang, eis que nos encontramos perante um elemento que introduz aspectos quase transcendentais, que escapam à ciência” (PRIGOGINE, Ilya. O Nascimento do Tempo. Tradução de Marcelina Amaral. Edições 70, Lda. Lisboa / Portugal, 2008, p. 57). Como adotar, portanto, uma explicação da origem de tudo fundada num fenômeno singular?

De acordo com Prigogine, o universo é o resultado “de uma instabilidade que sucedeu a uma situação que a precedeu; em síntese, o universo terá resultado de uma mudança de fase em grande escala” (Idem, p. 33). Caso Prigogine e os/as demais cientistas que apoiam esse ponto de vista estiverem corretos(as), havia algo anterior a este universo onde estamos. O que? Aí é que a "porca torce o rabo", pois não há sequer palavras adequadas para explicar esse "antes", apenas para citar uma única dificuldade que surge a partir dessa explicação: “Se o universo tem verdadeiramente uma história e, portanto, um passado e um começo, ele deveria ter surgido do nada. Mas como o ser poderia surgir do nada? Não seria preciso então repensar os conceitos de “ser” e “nada” ao mesmo tempo em que somos levados a repensar os conceitos de espaço e de tempo?” (PIETTRE, Bernard. Filosofia e ciência do tempo/Bernard Piettre; tradução: Maria Antonia Pires de Carvalho Figueiredo. – Bauru, SP: EDUSC, 1997, p. 162). 

Edwin Hubble
Outra questão interessante: se havia algo anterior a este universo, então, podemos imaginar que o Big Bang não se trata verdadeiramente de uma singularidade, mas de um fenômeno que pode ter ocorrido várias e várias vezes. Nesse caso, diferentemente do que imaginou o matemático alemão Rudolf Clausius, o universo não caminha para a sua morte térmica, justamente porque ele não é um sistema fechado. Ou seja, nosso universo seria apenas a "fase" de um processo cósmico que poderíamos dizer infinito. Um  fenômeno repetitivo capaz de ser explicado pela ciência.

Nem vamos falar aqui das teorias que defendem a ideia dos múltiplos universos. Ou seja, que esta nossa casa é apenas uma em meio a tantas outras. Ou ainda, daquelas que afirmam a multiplicidade das dimensões do tempo, dos universos paralelos, "buraco da minhoca" etc. É muita viagem. Porém, convém dizer que são teorias sérias e fundamentadas em muitos cálculos.

Eu, um humilde historiador, devo dizer que me encontro muito mais próximo das ideias de Prigogine do que da tese de que tudo surgiu com o Big Bang. E você?