Moro numa parte do bairro da Sacramenta que anos atrás era quase que completamente alagada. É o que chamamos em Belém de "baixadas": regiões da cidade que ficam abaixo do nível dos rios que a circundam. Minha casa, assim como a grande maioria, era de madeira, construída sobre o Canal da Pirajá, anteriormente um dos muitos igarapés que atravessavam a capital paraense. Quando chovia as águas do igarapé invadiam nosso banheiro e por pouco não tomavam conta do andar térreo. Durante o inverno a situação piorava. Tínhamos que ir para o trabalho com os sapatos nãos mãos, pisando na lama até o momento em que parávamos em alguma casa mais adiante para lavarmos os pés e seguirmos viagem.
Baixada de Belém - Bacia do Una |
No dia que o meu filho Alexandre completava cinco anos caiu uma chuva torrencial que alagou completamente a Rua Nova, onde moramos até hoje. A altura da água chegava no joelho. Tentei persuadir a Regina a mudar o local da festa para a casa de uma das minhas irmãs, mas ela não aceitou dizendo que a comemoração tinha que ser na nossa residência. Ela chorava copiosamente, pois temia que ninguém participasse da comemoração. Qual não foi a nossa surpresa quando os/as amigos(as) começaram a chegar, com suas calças e saias suspensas até o joelho, sapatos nas mãos. Foi um momento de grande alegria, daqueles inesquecíveis.
No local o Hotel Regente, na década de 60 foi a sede da União Acadêmica Paraense (UAP). Seu prédio e teatro foram destruídos sob o comando do coronel José Lopes de Oliveira |
Durante a ditadura militar e principalmente na década de 1980 se constituíram fortes movimentos sociais urbanos que lutavam por melhores condições de vida da população da periferia. A Sacramenta era um dos bairros mais mobilizados à época. Haviam três grandes lutas se desenvolvendo no período: 1) Na Área da Aeronáutica (desde o início do Canal da Pirajá, na Av. Dr, Freitas, até área que se convencionou chamar Malvinas, às margens do Canal São Joaquim). Aliás, nesta última os nomes das ruas são de pessoas que estiveram à frente das lutas pela permanência da população no local, ou das que apoiaram as ações do antigo Centro Comunitário Primeiro de Setembro: Claudio Bordalo, Carlos Augusto dos Santos Silva (o Guto), Raimundo Jorge Pires Bastos, Pe. João Beuckenboon, Dr. João Marques e outros; 2) Na Área Promorar (Canal do São Joaquim) contra as tentativas do Exército de remanejar compulsoriamente centenas de famílias para o que é hoje o bairro Providência, próximo ao aeroporto, e; 3) Na área denominada Ferro Costa, por conta da família (latifundiários urbanos) que se dizia proprietária da região onde moravam cerca de 5.000 famílias.
Na Área ferro Costa travamos intensas disputas com Jader Barbalho e seus aliados, que incluía naquela época a militância dos Partidos Comunista Brasileiro (PCB) e do Brasil (PC do B). Jader e seus assessores mais próximos estimularam gangues de arruaceiros a nos enfrentar nas ruas. Então, era muito comum os choques violentos, pois eles nos atacavam quando desenvolvíamos a mobilização da comunidade para lutar pela desapropriação da área e a titulação das posses. É impossível não lembrar de pessoas valorosas que se empenharam de corpo e alma nessa luta: seu Laudemar, Carlito Aragão, Alberdan Batista, Marciana, Irene, os/as integrantes do Movimento Jovem da Passagem "E"/MOPAE (Carlinhos Matos, Nei, Neia, Souza, Rosa e outros) e da Juventude Unida na Caminhada pela Libertação do Povo/JUCALP (Domício, Cabinho, Nana, Maria, Rosa, Lucia, Lucica, Graça e outros), ambos grupos jovens da Paróquia de São Sebastião que, inspirados na Teologia da Libertação, se integravam às lutas sociais. Também é preciso lembrar da participação ativa da base social dos Centros Comunitários Irmãos Unidos e Boa Esperança.
Nas manifestações organizadas pela Comissão dos Bairros de Belém (CBB), como as grandes passeatas pelas ruas do centro, as organizações comunitárias da Sacramenta estavam entre os destaques. Chegávamos fazendo muito barulho: "Aguenta, aguenta, aguenta, chegou a Sacramenta!", bradávamos com todas as forças. Íamos em passeata do bairro até o centro para nos juntar aos outros movimentos sociais.
Na década de 1980 criamos a partir da antiga Área Ferro Costa o Movimento pela Urbanização Popular (MUP), que tinha como objetivo estratégico a urbanização da área influenciada pelo Canal da Pirajá. Moradores e moradoras como a Doninha, seu João Trindade, dona Lucinha, dona Maria, dona Rosa, Gilberto Saldanha, Regina Ferreira, seu Benedito, Jorge Cabeção, seu Aluísio e esposa, Pedro Peloso, Varela e outros(as) merecem todas as homenagens pelo que fizeram.
Não é possível negar a contribuição do MUP para a constituição posterior do Movimento em Defesa do Projeto de Macrodrenagem, que reunia centros comunitários de diferentes bairros da Bacia do Una, bem como do Movimento em Defesa dos Projetos de Saneamento, que incorporava entidades de Ananindeua que atuavam nas áreas onde estavam sendo (mal) executados o PROSEGE e o PROSANEAR, projetos de saneamento financiados pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e Banco Mundial (BIRD), respectivamente.
Na luta para melhorar as condições de vida na nossa área realizamos mutirões, assembleias, ocupação da Secretaria Municipal de Saneamento e muitas outras iniciativas. Lembro da vez em que Carlinhos Matos, Gilberto Saldanha, Domício Nunes e eu entramos em baixo do piso da retífica que se localizava bem no encontro dos canais da Pirajá e do Galo, bem ali no bairro do Acampamento, próximo à famosa ponte do Galo. Pois bem, tivemos que tomar "alguns" goles de cachaça pra enfrentar a empreitada. Era tanta sujeira, excrementos (merda, mesmo!), madeira, lata enfim, muito lixo, que impedia que as águas do Pirajá corressem livremente. O que era um grande problema quando se juntava maré alta com chuva torrencial. Tínhamos à época em torno de 20 anos. Lembranças da juventude...
É o que vejo a partir da minha casa |
Hoje, olho do terraço da minha casa e vejo prédios altíssimos "se aproximando" da área em que moro. Vejo a população de menor poder aquisitivo saindo do local, assim como as casas de madeira sendo substituídas pelas de alvenaria. Uma parte considerável da atual população nem deve saber o que centenas de moradores e de moradoras passaram para garantir que a área fosse urbanizada. Devo confessar, porém, que tenho orgulho do que eu e tantos(as) outros(as) fizemos. Sinto que uma parte de mim está em cada rua, nesse pedaço de chão que, infelizmente, o capital imobiliário que tomar para si. Tudo sob as bençãos de Dudu e sua trupe.